3 de julho de 2016

A Última Expressão de Horror


Respeitosamente, às almas suicidas.

No momento o assassino avançava numa campina. Era uma noite incomum! Havia uma claridade tênue originada por detrás das nuvens rosadas que pairavam sobre o imenso descampado. Um sentimento de incapacidade assomou o coração do homem. Queria chegar à luz, mas - se nada de extraordinário acontecesse - seria impossível. Resignou-se quanto a isso.

Ele lamentava o que fizera minutos atrás. Trazia no peito uma angústia lancinante. Menos dolorido seria um punhal, ele ponderou. Se estivesse vivo, certamente tentaria outro suicídio. Rapidamente aquele local sombrio lhe chegara após se matar.

Cometera o ato às duas da tarde, e no fechar e abrir de olhos, viu-se na planície erma e sombria. Escuridão, solidão e frio. De tanto perscrutar o céu, viu estranhas e imensas aves que efetuavam voos altaneiros. No momento em que tomou conhecimento dos pássaros, começou a escutar gorjeios que se assemelhavam a melodiosos conselhos para que o homem prosseguisse adiante, para o sul. Tudo pareceu sutilmente infernal.

Uma das aves do bando, talvez a maior, pousou no chão e abriu as asas num movimento inócuo. Detrás do dorso passeiforme, uma sombra diáfana esgueirou-se para o chão. O rosto da sombra era um vórtice negro que girava em círculos vaporentos. Trazia um coroa de pequeninos ossos triangulares cravados num opaco crânio desprovido de cabelos. O anfitrião translúcido assegurou que o homem deveria caminhar até atingir a única floresta que havia na planície.

O homem argumentou que não sabia onde estava. E queria essa resposta. A sombra com face vórtica pediu que ele caminhasse até a floresta. Mas o outro redarguiu, solicitando que a nódoa enegrecida o levasse para perto da tênue luz que emprestava uma coloração levemente âmbar em redor das nuvens rosadas.

A coisa que viera no dorso da ave avisou que a luz era inatingível por quaisquer seres que estivessem naquela campina obumbrosa. E incentivou dizendo: “A floresta é o local onde todo desespero e angústia terá fim.” – a voz passava um agouro indefinido.

O suicida avisou que não via nenhuma floresta. Seu interlocutor inumano pareceu ignorar a frase e flanou lentamente até a ave fantástica de bico côncavo, para alçar voo.

Enquanto subia reafirmou: “Continue caminhando nessa direção. Todos que aqui chegam são encaminhados para lá.”

“Quem é você?” – gritou o homem que se matara.

“Eu sou a escuridão”.

O homem arrepiou-se e recomeçou a caminhar. Manteve-se em movimento por mais três horas. As lembranças de sua vida o atormentavam. Julgou ter feito a escolha errada ao se matar. Os problemas financeiros não pediam essa solução. Os problemas amorosos, fora ele quem os criara ao trair sua mulher. Tudo o assombrava como tristes avejões que só incomodam e não causam mal algum.

Deixara para sua fiel esposa a tarefa de criar os dois filhos nascidos no mesmo dia e hora, e que ainda nem andavam. A sua covardia o acossava pungentemente. Era algo insuportável.  

Como se livraria dessa terrível culpa era uma pergunta que se fazia constantemente. “Como suicidar-se outra vez?” – ele se indagou.

Começou a chorar logo depois que a chuva chegou. O caminhar havia ficado mais difícil. Mas não desistiu. Já divisava a floresta. Parecia tão-somente uma árvore com fenomenal copa. Uma copa tão larga e estranha que tocava o chão lamacento numa gigantesca circunferência arbórea.

A poucos metros da floresta, ele parou e olhou para cima. A sombra, voando na ave gorgeante, descia lentamente, em movimentos circulares.

Ainda no ar, ela pareceu indicar o sul utilizando uma forma opaca que poderia ser comparada à mão de um ser humano. A sombra fora obtusa quando disse: “Vai, livra-te do teu desespero ali dentro.” O suicida não se importou com a audácia do interlocutor inumano. Ganhou o ventre da floresta, ao trespassar a espessa e nigérrima copa do primeiro arvoredo.

Lá dentro, o homem viu seres inconcebíveis à compreensão humana. Eram rostos contristados incrustados nos troncos de outras taciturnas árvores. Em que pesasse a falta do desespero, não havia felicidade nos olhos daquelas criaturas. Os braços eram galhos que ficariam parados eternamente, sem direção definida. As pernas, justapostas que estavam, eram somente caules estáticos. As raízes, outrora pés que conduziram aquelas pessoas àquele lugar, suportavam, qual poleiros lúgubres, algumas aves como as que trouxeram a sombra de rosto indefinido, porém menores.

O estranho quis regressar, mas ao virar deparou-se com a sombra parada no exato vão que permitia a saída daquele local infernal. Quis correr e obliterá-la, mas seus pés já estavam bem solidificados ao chão daquela terra. A terra de uma Terra distante e sombria. O extremo do Paraíso. Assim, o suicida só pode sentir a mutação de si. E enquanto isso, a sombra passava por outra transformação. Flutuando, ela desenvolvia lenta e horrivelmente o rosto do autoassassino.

O desdobrar dos fatos foram apavorantes. O vórtice facial da sombra havia sumido. No lugar, o rosto tristonho e amargurado do suicida fora emoldurado pela coroa de ossos. Por horríveis momentos, a sombra fitou-o com enorme indiferença e desprezo. Pouco a pouco a massa umbrífera evoluiu para a invisibilidade.

A tudo o homem viu com medo. Mas ainda conservava em seu interior a angústia que se esvaía lentamente durante a metamorfose arbórea. Em minutos, ele estaria livre dos escuros sentimentos que lhe acompanhavam.

Mas antes teve a certeza que era o momento de acertar as contas que sempre ficam em aberto depois de um suicídio. As contas que o suicida crê que serão perdoadas após a morte.

Então, o horror sobreveio como um raio numa noite chuvosa. “Por quanto tempo ficaria ali? Ad eternum?” – ele se indagou.

A esperar pelo fim, restaria, apenas, uma face, uma última expressão da alma humana paralisada no tempo. Não haveria outro suicídio. Haveria, sim, apenas a última expressão de horror.


Por Pedro Pantoja


A Última Execução do Carrasco de Nantes


Sou filho do ferreiro Alphonse e de Nelly, uma ex-cortesã da taverna dos prazeres. Mamãe deveria morrer em alguns dias. Está muito mal e vem sofrendo demasiadamente com a lepra. Uma peste que ataca a tez e impinge círculos purulentos por todo corpo. Mas ela ainda nutre alguma esperança. 

Papai se sentou na cadeira de rodas, um hediondo patíbulo, e nunca mais se levantou. Uma viga de ferro caiu sobre suas costas, tornando-o aleijado para todo o sempre. Agora, espera – ansiosamente - a morte escolhê-lo como o próximo. Também é leproso! Ele quer morrer, ela quer viver.

Mas essa não é minha história, pois dela, a morte faz parte. Sempre andou ao meu lado, ombreada comigo. As duas, a morte e minha história, estão severamente agrilhoadas.Sou carrasco há quatro décadas e meia. Recebi a alcunha de Vorace, o Carrasco. Assim, o falecimento de outrem, mormente larápios, homicidas, adúlteros, prostitutas, estupradores e os que são afeitos ao incesto há quarenta anos e meio saiu de minhas vetustas mãos. E aconteceu de diversos modos: guilhotina, golpes de machado na nuca, afogamento, esquartejamento etc.

Assumi o ofício, que ninguém logrou ficar por mais de uma execução, numa época cuja violência alastrava-se rapidamente por Nantes. Naquele tempo, os oficiais de justiça sujeitavam qualquer do povo à função de verdugo. Escolhiam um munícipe a esmo (diziam que era sorteio, mas não estou de todo convencido) e nomeavam-lhe à função para efetuar a mórbida labuta.

Certa feita, um homem fora arregimentado no meio da rua e impelido a um tablado de extinção humana, onde uma mulher seria executada. Sua cabeça seria decepada aos olhos dos habitantes de Nantes. Não me recordo com clareza, mas no cair da noite souberam que a condenada tinha parentesco com o homem que a matara. Os parentes não se reconheceram porque os dois vestiam capuzes.

Foi no dia posterior, sob juramento de morte, que fui declarado verdugo oficial do governo local. A vaga ficara em aberto por quase um ano e os poucos que se aventuravam, desistiam após a primeira execução, quando não antes.

Jurei servir à França, com meu tétrico ofício, onde precisasse e contra quem fosse necessário. Executei muitas pessoas em praça pública, mas há alguns anos as execuções se restringiram às residências – ou, em pior caso, onde o sentenciado fosse encontrado, mesmo que fosse em público ou dentro de algum templo religioso - dos que viviam à margem da Lei.

Há alguns minutos, guardas da intendência de polícia chegaram à minha porta. Trouxeram-me uma epístola com o novo decreto do Prefeito de Nantes. Do documento, li apenas o parágrafo que condena à morte, com investidas do machado na nuca, os acometidos pela lepra. Há, apensado ao decreto, uma lista com cinquenta e sete nomes arrolados à execução. O ferreiro Alphonse e a ex-cortesã Nelly estão listados para a extinção.

Não sinto pelo meu pai, pois o homem tenciona morrer o mais rápido possível. E a execução ser-lhe-ia como dádiva, uma libertação da paraplegia. Mas mamãe... mamãe ainda luta para viver. Entretanto, serei profissional a ponto de executá-los, mesmo porque não há cura para a lepra e eu, quando abracei a profissão, jurei que abateria qualquer um que me fosse designado fazer. E se não o fizesse, seria guilhotinado em praça pública.

O mais comovente é a extensão do decreto que me obriga a atear fogo aos cinquenta e sete cadáveres. Isto é, nenhum irmão ou neto ou filho poderá enterrar seu ente querido dignamente, pois todos serão sepultados, já crestados, na vala comum. Depois de toda esta mixórdia infernal, solicitarei minha aposentadoria.


Por Pedro Pantoja


O Carrasco de Nantes


Eu retornava a Nantes, após uma prolongada ausência na Valônia e na Flandres batava, quando dois oficiais de justiça avançaram sobre mim e, sem outras palavras, me conduziram à praça de execuções, onde o patíbulo já estava armado.

Subiram-me ao cadafalso. Tremi de pavor. Mas, quando me enfiaram cabeça abaixo o capuz vazado nos olhos, respirei aliviado. Eu seria o executor, não a vítima. Nestes tempos, não havia em Nantes o carrasco oficial e a função de verdugo era exercida por cidadãos, arregimentados através de sorteio.

Entre verdugo e vítima, é evidente que eu preferia a primeira condição. Por isso alegrei-me, embora nada houvesse de agradável em decepar a cabeça de larápios ou prostitutas.

Cumpri fielmente o meu encargo, embora eu não pudesse saber quem era a vítima. A alma piedosa do alcaide de Nantes, avessa a execrações maiores que as ordinárias, fizera decretar que o executado teria a cabeça coberta por um capuz, semelhante ao do carrasco, mas sem orifícios. O corpo seria entregue, depois, aos familiares, mercê da necessidade de um enterro cristão.

Retornei a casa, portanto, com as mãos sujas de sangue. Procurei pela minha companheira, mas não a encontrei. E, quando anoitecia, a carroça mortuária parou defronte à minha vivenda. Dois piedosos beleguins fizeram entrar um corpo de mulher, que estenderam à mesa. Um terceiro trazia a cabeça da desgraçada envolvida no mesmo capuz com que fora executada.

Ao puxar o capuz pela extremidade, o beleguim revelou a face convulsa de minha mulher. Fora eu que, sem que o soubesse, a executara.

- Furto? - perguntei, em prantos.

- Fornicação – respondeu o beleguim.

Então cuspi na face do cadáver e saí de Nantes para nunca mais voltar.


Por Mephisto